quarta-feira, 30 de março de 2011

Viver

Viver
É ter um olho
Na fresta do tempo
É cravar as unhas na raiz
Do medo cotidiano
É correr
Com todos os pés descalços
Pelas calçadas do sonho.


Francisco Cleóbulo Teixeira

Plantar

Passadas fortes
Definidas
Nas rugas, o Sol
Vida
Nas mãos, o ferro
Força
Nos olhos, a terra
Esperança
Dúvida.



Francisco Cleóbulo Teixeira

quinta-feira, 24 de março de 2011

A missa

Maria Aparecida caminhava como se não sentisse o peso da enorme trouxa de roupas nem o frio da madrugada. Afora o canto dos primeiros galos e passarinhos, nenhum outro sinal de ser vivente. Povo preguiçoso, o daquele vilarejo. Ou era ela que acordava cedo demais? Gostava de acordar cedo, sim. Terminava logo de lavar as roupas e ganhava tempo para outros afazeres.
Maria já descia a ladeira do rio quando começou a ouvir aquilo. Era o terceiro dia seguido que ela ouvia aquele canto, parecido com canto de igreja, alternado por uma ladainha. Vinha dos lados da capela velha. Mas aquela capela já estava abandonada há bastante tempo. O padre até proibia os meninos de brincarem lá, porque havia o perigo de desabamento. O povo do lugar também comentava que havia atrás da capela um cemitério muito antigo, ainda do tempo dos escravos. Devia ser conversa fiada. Mas o que seria aquela música? Será que estavam rezando missa por lá? E porque alguém rezaria uma missa ali àquela hora da madrugada, ainda mais numa quinta-feira?
Ela suspendeu a trouxa de roupas, virou-se e voltou a subir a ladeira, tomando o rumo da capela velha. Era muito devota, mas ia muito mais movida por curiosidade do que por devoção. Lavaria a roupa algum tempo depois, que rezar pra Deus nunca era perda de tempo. O caminho para a capela era tão pouco transitado que se tornara fechado e escuro, com o matagal crescendo alto de um lado e outro. Por vezes, Maria quase não conseguia passar alguns trechos, como se os arbustos fossem fechar de vez o caminho. Mas ela ia em frente, pois aquele cantar bonito, diferente e cada vez mais próximo atraía de forma quase hipnótica.
Mesmo antes de chegar, Maria já percebera uma luz que saía pela porta da frente. Ela aproximou-se, e era uma luz forte, quase incandescente, como se o próprio Sol estivesse no interior da capela. Ela entrou, e qual não foi o seu deslumbramento. Aquelas pessoas não eram iguais às pessoas que ela via na igreja aos domingos. Pareciam mais bonitas e ela não lhes distinguia os rostos; pareciam mais perfumadas e ela não lhes sentia nenhum perfume; pareciam todos muito bem vestidos e saudáveis, apesar de haverem ali ricos e pobres, velhos e jovens, cegos e aleijados. Maria Aparecida sabia de tudo isso sem entender como.




O tempo passou e Maria, mergulhada em êxtase, nunca saberia dizer quanto tempo havia passado. Entendeu, porém, que terminara a “missa” porque todos agora se dirigiam para a porta de saída. Ela passou a seguí-los e podia jurar que os pés deles não tocavam o chão. Já do lado de fora, caminhavam em direção à parte de trás da capela, onde se dizia que existia o velho cemitério, todos aureolados pela mesma luz fascinante e que nada tinha a ver com a luz do Sol.
À medida que chegavam ao terreno do campo santo, aquelas pessoas iam desaparecendo, umas aqui, outras ali, outras mais adiante... Até que não restava mais ninguém. Maria Aparecida olhou para o chão ao seu redor e não viu nenhuma pegada, a não serem as suas próprias. Ela soube então que, a partir daquele momento, haveria lugar para muitas outras coisas em seu coração, mas não mais haveria lugar para o medo.






Francisco Cleóbulo Teixeira

segunda-feira, 14 de março de 2011

Reflexões de um equilibrista

A vida é que não seria
Se uma rede houvesse
Entre o solo e a corda bamba.
Entre o solo de concreto e a corda infinita
Cem metros de puro vazio
Que bem podem ser a escolha.
Os braços abertos não são asas
Só buscam a agonia do equilíbrio.
Mas, por que não ser um pássaro
Por poucos segundos apenas
Se, muito mais do que cair
A grande queda é prosseguir?


Francisco Cleóbulo Teixeira

Solo

Nunca importa o princípio
Meio, fim
- não a eles -
Desse balet dantesco
Magnífico, semi-mortal.
Luz e sombras
Rodopios
Saltos e tropeços
No palco
Deles sob medida, por eles determinado
A vida em transe
No limiar
-gritos, sussurros
soluços, gargalhadas -
(o palco determina)
E um só ponto de vista:
No palco, a vida.


Francisco Cleóbulo Teixeira