segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Hemisfério Sul

Ao sul desta linha
Os homens sucumbem, e sucumbem
Ao Sol carcereiro
Às intempéries do sangue
Aos arroubos da Lupocracia
À letargia.
Daqui os homens contemplam, e contemplam
A vida que se escoa ao longo
Dos dias aqui mais curtos
Onde nem as lápides permanecem
Porque a História veio nos porões
Das velas sopradas pelo Norte.
Aqui não perduram princípios
Códigos, normas
Porque batalhas não foram travadas
Não houve marchas
Nem contramarchas.
Nos campos, corpos, corações
Só carnavais.
O cenho franzido ante a espada
Os joelhos dobrados ante a cruz
Porque no ventre
Da terra e das mulheres
Só, e tão somente
Incertezas.



Francisco Cleóbulo Teixeira

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

A fotografia

Ouvi esta história pela primeira vez ainda criança, no início dos anos 70. Todos os personagens são reais. Dois deles, já com idade bem avançada, ainda vivem e moram em uma cidade do interior do Ceará, na qual também morei durante algum tempo. É a mesma cidade onde teria ocorrido o fato.
Posteriormente, ouvi a mesma história em outros lugares e como se tivesse ocorrido com outras pessoas. Portanto, havia se transformado numa lenda urbana.
Pessoalmente, fico com esta versão da cidade do interior cearense: as pessoas envolvidas gozam de excelente conceito na sociedade local e não teriam nenhum motivo para criar boatos infundados. Atualmente, recusam-se a falar sobre o assunto.


- Doze horas, doutor. Batiam doze horas da noite no sino da matriz quando a tal mulher chegou na praça e me pediu a corrida. Assim que chegamos nas proximidades do cemitério, ela mandou que eu parasse, desceu do carro e disse pra eu cobrar a corrida hoje, neste endereço aqui. Enquanto eu anotava o endereço, ela caminhou pros lados do cemitério e, quando olhei de novo, não vi mais nem sombra. Achei esquisito porque não tem nenhuma casa daquele lado. Só o cemitério...
O médico pediu uma descrição completa da mulher. À medida que ouvia o motorista, empalidecia visivelmente. Ao final da descrição, estava sentado no sofá, o rosto terrivelmente pálido, a boca entreaberta, os olhos parados.
- Não... não pode ser! - conseguiu articular, quase num sussurro.
- O senhor tá sentindo alguma coisa, doutor? - o taxista estava confuso. Neste momento, uma mulher de meia idade entrou na sala. O médico dirigiu-se a ela:
- Marta, você sabe onde se encontra aquele álbum grande de fotografias, um de capa azul?
- Aquele antigo? Está guardado num baú lá no quarto de hóspedes. Faz muito tempo que ele está ali, junto com outros pertences da...
- Traga-o aqui, por favor - disse, cortando a frase da mulher. Enquanto ela saía, ele virou-se para o taxista, já um pouco desconfiado.
- Você é daqui mesmo?
- Não senhor. Sou de Cajazeiras, lá na Paraíba. Mas já tem três anos que moro aqui, conheço a cidade como a palma da mão. O senhor sabe quem é Joaquim Terto, doutor?
O médico fez que sim. Joaquim Terto era um taxista muito popular na cidade.
- Pois sou primo legítimo dele.
A mulher voltava com o álbum nas mãos, entregou-o ao médico e este o abriu. Era um álbum velho, já bastante corroído pelo tempo. Havia uma fotografia de mulher que tomava toda a primeira página. Ele ficou algum tempo contemplando a foto, com uma expressão que não disfarçava a profunda tristeza. Por fim, rompeu o silêncio que já estava ficando constrangedor.
- Seria esta a mulher? - virou o álbum para o motorista de táxi.
- Era sim, era esta mesma. Uma senhora muito distinta, educada... e trajava este mesmo vestido aí da foto.
- Era o vestido do seu último aniversário. Era também o vestido com o qual ela foi... - o médico interrompeu-se, a voz já embargada.
- Ela é parenta sua, doutor?
- Ela era a minha esposa. Ela morreu...
- Hein?!
- ... há dez anos atrás.

O motorista de táxi ergueu-se do sofá quase que de supetão. Seu rosto estava transtornado, as mãos amassavam nervosamente o pequeno boné. Agora estavam explicados aqueles estranhos calafrios, aquela sensação tão desconhecida que sentira enquanto transportava a mulher. Virou-se e caminhou apressado em direção à porta de saída.
- Eh, espere! O dinheiro da corrida - falou o médico, tentando alcançá-lo.
- Não... Não... Deus me livre de cobrar corrida de defunto!
Saiu, fazendo o sinal da cruz.





Francisco Cleóbulo Teixeira

domingo, 19 de dezembro de 2010

Sobre o poema “Flor do tempo”

Este poema me veio numa noite de furor alcoólico, no longínquo ano de 1987. Eu estava chegando de viagem à minha cidade natal, mas o meu ânimo era de fuga: eu queria sair dali, daquela vida, e não precisar mais voltar. Pela velocidade com que dirigia, inconscientemente era como se quisesse fugir da própria vida...
Mas aquele era um tempo de noites furiosas, tempo de alegre e entusiástica autodestruição. Não penso mais assim, no que diz respeito aos lugares, às pessoas e às atitudes. Continuo pensando assim no que diz respeito à busca.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Flor do tempo

Qual criança com febre
A mente
À mercê de um delírio.
A máquina cúmplice
Ilumina e devora a estrada
Com a voracidade das feras.
Ela ruge
E meu sangue corre macio
Suave carícia, suave
Entre as minhas artérias...
Eu, a máquina
O conjunto, o efeito
Velocidade...
Sublime, translúcida, fatal.
As pálpebras já pesam
Mas a máquina ruge, e ao longe
Surgem tuas luzes.
Dá-me um tempo
Presenteia-me com a tua distância
A verdade, bem sei, não reina em ti
Não é de ti que ela brotará.
Não dos teus bares sórdidos
Desses copos cheios-vazios
Dessa inércia ululante.
Não dessa vida, ei-la por um fio
Ou de uma morte mulher sedutora.
A verdade brilha no horizonte
Na busca
É flor que brota do tempo.

Francisco Cleóbulo Teixeira

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Filhos da rua

Ei-los
Filhos sem pais
Meninas-mães de filhos
De quem?
Pela avenida indo e vindo
Sem saber para onde
Nem de onde.
Subsistências
Sempre na rua, porque
De todas as portas, enxotados
Não como cães: os cães ficam.
Espantalhos
Trapos sobre o couro
Couro sobre os ossos
E quase que mais nada.
Deserdados
Andam aos bandos
Mas nunca houve tanta solidão
E o futuro
Não é nem o dia seguinte.
Invisíveis
É da indiferença do mundo
Que vem a mãe de todas as dores.
Então lhes resta a cola
Alimento remédio único, pára
Todas as dores, para todas as fomes.
Todos têm cor de cinza.
São todos cinza.

Francisco Cleóbulo Teixeira

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Sobre o poema “Chatila e Sabra (Retrato de um massacre)”

Sempre tive admiração pelos judeus. É um povo grandioso que muito fez pelos avanços da humanidade nos mais diversos campos da ciência e cultura, mas que tanto sofreu, espalhado e perseguido pelos quatro cantos do mundo.
Entretanto, afirmo a premente necessidade de reconhecimento da Palestina como Estado livre e soberano. Tanto quanto os israelenses, os palestinos têm direito ao seu território integralmente, com absoluta independência e autodeterminação.

domingo, 5 de dezembro de 2010

Chatila e Sabra (Retrato de um massacre)

Chatila e Sabará (Retrato de um massacre)

A Yasser Arafat

Foi profundo o ritual
De tantas mãos descarnadas
Desarmadas.
Toscas, cravando-se trêmulas
De um tremor derradeiro
Na terra santa
Sonhada.
Havia canteiros de olhos lívidos
Guardando a inexpressão de vidas arrebatadas.
Havia cães, carneiros, porcos
Homens, mulheres
Crianças velhas e velhos crianças
Sem luz sem cor sem idade
Na súbita morte enlaçados.
Havia crateras na carne
Sangue na carne, sangue no sangue
Sangue na terra.
Havia uma neblina fina constante
Uma neblina em tudo e para todos
Só não para aqueles.
Mas outros dias virão, e com eles
O Sol virá, sempre vem.
E viva a doce mãe Palestina
Pátria uterina, embrião
Mais do que causa, sina.



Francisco Cleóbulo Teixeira

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Ela, Cláudia Schiffer

Intocável, ela
Do seu trono no topo
De um Himalaia de dólares
Reina.
Dentre tantas deusas deste nosso tempo
Netas do Capitalismo, filhas do Consumismo
(as misérias do mundo são as cores delas)
É Cláudia a mais bela.
Os ricos escravos do consumo
Rainhas, princesas e drag queens
Vestem as suas peles
Mas ninguém, nem mesmo o grande mago Copperfield
Toca-lhe a Pele.
Nos camarins, despe-se e veste-se
Nas passarelas, desliza, virtual
Metamorfoseia-se, e só os grandes marchands
Lhe sabem os sifrões.
Não ama (os deuses nunca amam)
Não vê, não toca, não sente, não fala.
Ela apenas é
E para este mundo, isto basta.




Francisco Cleóbulo Teixeira

domingo, 28 de novembro de 2010

Sobre a premiação do conto “A noite da caça”

A noite da caça foi publicado pelo Banco de Talentos Febraban, versão 2003. A FEBRABAN, uma entidade multimilionária, não concede prêmios em dinheiro; apenas enviam alguns exemplares da coletânea para os autores premiados.
O conto perdeu o ineditismo e este autor aqui perdeu a oportunidade de vencer festivais que premiavam em dinheiro. Só posso dizer que não ocorrerá novamente. Sem premiações, não participo de mais nada com ficção inédita.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

O suicídio

Eram oito horas da manhã e o sol estava a pino. A avenida, uma das mais movimentadas da orla, já estava completamente engarrafada em todas as pistas e nos dois sentidos. Três PMs se esforçavam para reatar o fluxo do trânsito, mas o barulho ensurdecedor das buzinas e dos motoristas irritados só acentuava mais ainda o caos.
Havia muita gente circulando em torno do cadáver. Pessoas que saíam das lojas, das lanchonetes, dos pontos de ônibus; estudantes, de algumas escolas próximas, e uns poucos banhistas. Todos olhavam o corpo mal coberto com um lençol providenciado pelo hotel. Alguns faziam perguntas, outros teciam comentários enquanto os policiais permaneciam impassíveis, mantendo o cordão de isolamento e aguardando a chegada do pessoal do I.M.L.. O gerente do hotel conversava com um oficial da PM, gesticulando muito e demonstrando aflição. Provavelmente tentava convencer o policial a retirar logo o corpo dali, para reduzir a publicidade negativa que fatalmente recairia sobre o seu estabelecimento. O oficial mostrava-se irredutível, mal respondendo através de monossílabos e meneando a cabeça negativamente. Neste momento, um repórter com um microfone e acompanhado de perto por um fotógrafo abria caminho na direção deles. O gerente retirou-se com um ar de desalento.
Pelo que pude apurar, ela havia se jogado do 10o. andar, dois andares acima do meu. Não se sabia precisar a hora exata do ocorrido, mas calcula-se que foi entre cinco e seis da manhã, pois o guarda noturno afirmou que, nesse intervalo de tempo, ele ouviu um barulho semelhante a um baque surdo. Poucos minutos depois, encontrou, ou melhor, quase tropeçou no corpo estendido grotescamente na calçada.


Não posso dizer que a conhecia. Devo tê-la visto umas três ou quatro vezes no saguão e no elevador. Se nos cumprimentamos alguma vez, foi aquele cumprimento de pessoas que só têm em comum o fato de estarem hospedadas no mesmo hotel, o que nada significa.
Olhei mais uma vez disfarçadamente para alguns rostos da multidão. Eu sabia que havia alguém ali satisfeito com aquela cena; alguém que havia pago um alto preço em dinheiro vivo para que a tragédia ocorresse. Quem seria? A curiosidade dele ou dela (havia sempre disfarçado bem demais a voz pelo telefone) deveria ser bem maior que a minha. Mas esta pessoa jamais me descobriria. Eu poderia descobri-la. Se quisesse. Só que não quero saber, nem dele (ou dela) nem de seus motivos. A única coisa que eu queria de tal pessoa era o pagamento, e este já estava comigo.
Quanto à moça morta, cuidei para que não sofresse. Fui rápido quando a contundi, ela praticamente não percebeu nada, e estava completamente desfalecida quando a joguei pela janela.

Francisco Cleóbulo Teixeira











segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Sobre o poema “Os homens do Norte”:

No início dos anos 80, eu era um garoto que sonhava com revoluções e acreditava na solução pelas armas. O IRA (Exército Republicano Irlandês) era o meu modelo por excelência: um bando de jovens idealistas e arrojados, lutando contra uma potência militar que já foi um dos maiores impérios do mundo (o Império Britânico).
Os Guerrilheiros do IRA eram admirados em muitas partes do mundo, inclusive nos EUA, de onde descendentes de irlandeses católicos (inclusive membros da família Kennedy) enviavam remessas em dinheiro. John Lennon os teria ajudado em dinheiro, e o U2, entre outras bandas de rock, rendeu-lhes homenagens com músicas (“Sunday, bloody sunday”, etc.).
O poema é principalmente um tributo a Bob Sands e a outros nove ativistas, que morreram em uma greve de fome porque queriam ser reconhecidos como prisioneiros de guerra, e não como presos comuns.
Hoje em dia, não acredito mais em grandes revoluções. E não creio mais na solução pelas armas.

Francisco Cleóbulo Teixeira

Os homens do Norte

Tributo a Bob Sands


Os homens dessa estirpe
Guardam no peito a certeza
De que morrer é preciso
Pois navegar já se fez
Pelas mãos do opressor.

Para os homens dessa estirpe
Somente as explosões urbanas
E o matraquear das metralhadoras
Compõem a sinfonia louvável
O único idioma inteligível.

É que nunca há tempo para as lágrimas
De um povo que retém na pele
A lâmina do ódio secular.
E quantos projéteis pela carne adentro...
E quantas vidas pela carne a fora...

São tristes os homens do norte
E muitos anos de luta
Fizeram do seu país um cemitério
Onde exércitos inteiros são sepultados
E, sepultados, retornam
Ao ventre da grande mãe terra
Ao útero materno da pátria.

Francisco Cleóbulo Teixeira

sábado, 20 de novembro de 2010

Sem título

Beira mar de Fortaleza, certa noite de julho de 1998.
Para a mocinha desconhecida da mesa ao lado.


Sorris, e no teu sorriso,
Sente-se o peculiar esplendor
De quem nasce a cada sorriso.

Sorris, e a noite é linda
Mas a noite é quase nada
Comparada ao teu sorriso.



Francisco Cleóbulo Teixeira

O pacto

O Rei repassa a própria alma
Para no trono permanecer.
Satã lhe preserva o trono
Fica-lhe com a alma
E também com o poder.
O rei sorri satisfeito
Satã não sorri porque
Sempre quer mais, muito mais
E já que nada o satisfaz
Ele agora quer a mim
E quer você.



Francisco Cleóbulo Teixeira.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

A noite da caça

O ano era 1997, meados de junho. Ele caminhava pela avenida. Tantas pessoas, apesar da neblina intermitente. Na hora do rush, nunca é fácil avançar pelas calçadas do centro. Mas Jorge não tinha dúvidas. Caminhava sem pressa, sem medo, sem nada além de um ódio tão bem concentrado que o deixava insensível aos elementos externos. Ali só valia a impressão deixada pelo pesadelo há algumas horas sonhado; um sonho feio, mas com jeito de premonição.
Meteu a mão sob a surrada jaqueta de couro e fechou os dedos em torno do cabo da arma. Sorriu, agora um pouco excitado, como se estivesse tocando o próprio membro, nas carícias preliminares de um ato sexual. Mas ele sabia que, da próxima vez que tocasse ali, não seria para nenhum tipo de carícia; e o que viria logo a seguir não teria nada a ver com sexo.
Havia acordado no meio da tarde, provavelmente gemendo. Era sempre assim, quando sonhava. A mulher estava costurando em um canto da sala, cabisbaixa e tristonha, como era de praxe ultimamente. Costurava o dia inteiro e era dali que vinha o sustento da casa, porque ele estava desempregado há um tempão. Aos poucos, vinha desistindo de sair diariamente para procurar emprego; logo, logo, descobriu que ficar em casa podia ser pior do que voltar de mãos abanando. As crianças certamente estavam vadiando pelas ruas: não pudera mais sustentá-las em escolas particulares e não mais havia vagas nas escolas públicas.
Tinha sonhado que era criança outra vez e estava em um lugar tenebroso, mas que lhe era familiar. Como sempre acontece nos sonhos, aquele ambiente variava, ora sendo as margens do rio da sua cidadezinha natal, ora sendo as proximidades do rio Capibaribe em pleno coração do Recife. Havia outras pessoas andando por lá: alguns eram velhos conhecidos seus; outros, pessoas que ele nunca tinha visto antes. Aqueles que conhecia eram todos parentes ou amigos seus já falecidos, mas que estavam ali vivos e estranhamente à vontade. Todos, sem exceção, olhavam para ele e o cumprimentavam, como que lhe dando boas vindas.
Contudo, havia mais alguém ou alguma coisa naquele lugar, que merecia tanta atenção quanto ele; porque as pessoas olhavam alternadamente para o Jorge menino... e para o outro lado. Moviam as cabeças lentamente, como se acompanhassem uma partida de tênis em câmera lenta... sendo que, do outro lado, estava o seu oponente.
Era um monstro enorme, que não tinha braços nem pernas... um réptil gigantesco... uma cobra sucuri.

II


Jorge havia nascido e passado toda a infância em uma região pantanosa do Mato Grosso, num pequeno vilarejo de nome Santa Helena. Lá, viveu uma experiência que ficou como que marcada a ferro nas suas lembranças: voltava da escola com outros garotos, quando viu um ajuntamento de pessoas na margem do rio. Todos olhavam para uma enorme sucuri, que havia sido morta a pauladas pelos pescadores enquanto dormia. De comprimento, media cerca de dez metros. Era das maiores que já se tinha visto por lá.
Entretanto, o que mais impressionava era aquele engrossamento dela, entre a cabeça e a cauda. Era um novilho, disseram as pessoas, que a sucuri tinha devorado.
Jorge lembrava que passou dias apavorado. Se um bicho daqueles podia matar e comer um novilho, quase um boi, podia muito mais facilmente comer um menino do tamanho dele. Veio a saber depois que alguns daqueles pescadores abriram a cobra... e aproveitaram parte da carne do novilho devorado.

Mas o animal do pesadelo não estava nem um pouco sossegado, dormindo ou indolentemente mergulhado naquela prolongada digestão, como deveria ser. Não! Aquela sucuri se contorcia horrivelmente, os olhos esbugalhados e terrivelmente humanos. A boca se escancarava em uma forma de esgar que não tinha nada de escárnio. Os sons que saíam daquela boca eram também humanos e agoniados. Sim, porque a sucuri agonizava, engasgada com o próprio alimento que insistia em voltar, numa espécie de digestão às avessas. Como para confirmar aquele raciocínio alucinado, dois tentáculos saíram do meio da cobra e se dirigiram para o que seria a garganta. Mas já não eram exatamente tentáculos. Eram dois braços humanos, cujas mãos peludas se cravaram na garganta inchada, em uma tentativa final, desesperada e inútil.
No meio da confusão dantesca que era o pesadelo, Jorge via e antevia muita coisa; parecia ter um completo, inexplicável domínio da situação. E, pasmem, ele não queria sair do pesadelo. Não desejava acordar, como se aquilo fosse o mais singelo e agradável dos sonhos. Deveria estar com medo porque, no sonho, ele era pequeno e indefeso, em alguma fase qualquer da sua infância perdida. Medo porque, desde quando se lembrava, sempre tivera pavor, repugnância de répteis em geral. E a sucuri era o maior réptil de que tinha conhecimento.
A metamorfose do animal não chegou a se completar antes que Jorge acordasse, mas ele ainda teve tempo de ver a cabeça agora humana... e o rosto familiar.
III



Talvez por conta das recordações resgatadas pelo sonho, lembrou-se também que tinha este nome porque a mãe, ainda mocinha solteira, tinha visto em algum lugar um quadro que retratava a luta de morte entre um belo guerreiro e uma enorme serpente com asas. Quando soube que o guerreiro do quadro era São Jorge, ela decidiu que este seria o nome do seu primeiro filho homem. Até isto, de certa forma, se encaixava com o pesadelo.
Ainda deitado, fez um breve inventário mental de todos os problemas que o afligiam desde o dia em que fora demitido. Não era pouca coisa até ali, e ele tinha certeza de que tudo iria piorar. Feito um náufrago, agarrou-se outra vez à idéia fixa que se instalara em sua mente no exato instante da sua demissão. Aquilo tinha virado uma obsessão que foi crescendo e crescendo, até parar de crescer no fim desta tarde, quando atingiu o tamanho definitivo. Jorge então já estava bem desperto.
Levantou-se tranqüilamente decidido, tomou um banho, vestiu roupas limpas e uma jaqueta de couro. Só precisou de alguns telefonemas para saber aonde iria logo mais. Saiu para a rua.
E aqui estava ele agora, já dobrando a esquina da Conde da Boa Vista com a Rua da Aurora; a velha esquina do Cine São Luiz, às margens do Capibaribe. A neblina engrossou, virou chuva. Ele postou-se sob a marquise do cinema, abrigado da enxurrada. A última sessão terminaria logo mais, dali a alguns minutos. Ficou olhando os cartazes dos filmes e até se deixou absorver um pouco por eles. Do outro lado da marquise estava um pipoqueiro, uma menina vendendo balas, um policial militar.
Continuou absorto mesmo quando percebeu que a sessão havia terminado, as primeiras pessoas já buscando a saída do cinema. Mas só aparentemente absorto. Agora, estava alerta, atento àqueles que saíam e que não eram poucos. Quase todos vinham ainda meio risonhos, pois o filme era uma comédia. Entre eles, havia mais dois PMs.
Uns três minutos depois viu a cara redonda e sorridente do seu ex-chefe de repartição, acompanhado da esposa. Ali estava o burocrata gordo que lhe destruíra a vida, que lhe tirara o emprego com a mesma facilidade com que aparava as unhas. Aquele era o responsável pelo futuro tenebroso da mulher e dos filhos de Jorge. Enxugamento. Era como eles chamavam aquelas demissões em massa.
Viu o sorriso do outro se desfazer devagarinho, na medida em que o dele próprio se delineava e na medida em que sacava o revólver. Quando apontou a arma, a boca do outro estava aberta e redonda feito um O. Mas o alvo não era a boca, porque seria rápido demais, Jorge o sabia. O alvo era aquele pescoço balofo, e ele pressionou o gatilho. Foram dois tiros bem sequenciados, como se o atirador fosse um perito.
Seguiu-se uma confusão dos diabos, com as pessoas fazendo algazarra, correndo para todos os lados, enquanto o homem gordo levava as mãos ao pescoço e caía. Um dos PMs escondeu-se atrás da coluna. Os outros dois correram e se agacharam por trás de um dos táxis estacionados. Gritaram ordens, primeiro uns para os outros, depois para o homem que havia atirado. Já tinham sacado suas próprias armas. Certamente, queriam que Jorge largasse o revólver, se rendesse. Mas ele só tinha olhos e ouvidos para o gordo que se contorcia e gemia no chão, as mãos no pescoço empapadas de sangue, os pés chapinhando na água.
Os policiais dispararam. As línguas de fogo, as explosões e a nova gritaria foram, para Jorge, a mesma coisa. Os impactos eram como se muitas pessoas o empurrassem contra a parede, todas a um só tempo. Sua cabeça bateu, estilhaçou o vidro dos cartazes. Ele deslizou suavemente pela parede e para o chão, onde terminou sentado com as pernas estranhamente esticadas, feito um marionete largado em um canto.
Um pensamento que era uma certeza aflorou-lhe à mente turva: o outro morreria depois dele, e morreria sem poder respirar, as unhas encravadas na garganta, os olhos esbugalhados. Era isto que dizia o pesadelo e era assim que seria, pouco importando o que as pessoas depois fizessem para socorrê-lo. Enquanto ele próprio morria, veio-lhe uma forte sensação de deja vu. Como se já tivesse passado por tudo aquilo antes, como se tivesse morrido outras vezes.
O sangue dos dois homens se misturava, corria junto pela calçada, era diluído e levado pela água da chuva. Rumo ao velho Capibaribe, onde todas as águas são iguais.




Recife, agosto de 1997.



Francisco Cleóbulo Teixeira

Outro endereço

Boa noite, amigos,

Em virtude das dificuldades que, vez por outra, estamos encontrando para acessar o blog no seu endereço original, republicaremos aqui todo o seu conteúdo. As postagens não seguirão a mesma sequência do blog no outro endereço, que é
http://francislost.2u.blog.br
A primeira postagem do conteúdo é um conto, que se segue a este pequeno aviso.