segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Hemisfério Sul

Ao sul desta linha
Os homens sucumbem, e sucumbem
Ao Sol carcereiro
Às intempéries do sangue
Aos arroubos da Lupocracia
À letargia.
Daqui os homens contemplam, e contemplam
A vida que se escoa ao longo
Dos dias aqui mais curtos
Onde nem as lápides permanecem
Porque a História veio nos porões
Das velas sopradas pelo Norte.
Aqui não perduram princípios
Códigos, normas
Porque batalhas não foram travadas
Não houve marchas
Nem contramarchas.
Nos campos, corpos, corações
Só carnavais.
O cenho franzido ante a espada
Os joelhos dobrados ante a cruz
Porque no ventre
Da terra e das mulheres
Só, e tão somente
Incertezas.



Francisco Cleóbulo Teixeira

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

A fotografia

Ouvi esta história pela primeira vez ainda criança, no início dos anos 70. Todos os personagens são reais. Dois deles, já com idade bem avançada, ainda vivem e moram em uma cidade do interior do Ceará, na qual também morei durante algum tempo. É a mesma cidade onde teria ocorrido o fato.
Posteriormente, ouvi a mesma história em outros lugares e como se tivesse ocorrido com outras pessoas. Portanto, havia se transformado numa lenda urbana.
Pessoalmente, fico com esta versão da cidade do interior cearense: as pessoas envolvidas gozam de excelente conceito na sociedade local e não teriam nenhum motivo para criar boatos infundados. Atualmente, recusam-se a falar sobre o assunto.


- Doze horas, doutor. Batiam doze horas da noite no sino da matriz quando a tal mulher chegou na praça e me pediu a corrida. Assim que chegamos nas proximidades do cemitério, ela mandou que eu parasse, desceu do carro e disse pra eu cobrar a corrida hoje, neste endereço aqui. Enquanto eu anotava o endereço, ela caminhou pros lados do cemitério e, quando olhei de novo, não vi mais nem sombra. Achei esquisito porque não tem nenhuma casa daquele lado. Só o cemitério...
O médico pediu uma descrição completa da mulher. À medida que ouvia o motorista, empalidecia visivelmente. Ao final da descrição, estava sentado no sofá, o rosto terrivelmente pálido, a boca entreaberta, os olhos parados.
- Não... não pode ser! - conseguiu articular, quase num sussurro.
- O senhor tá sentindo alguma coisa, doutor? - o taxista estava confuso. Neste momento, uma mulher de meia idade entrou na sala. O médico dirigiu-se a ela:
- Marta, você sabe onde se encontra aquele álbum grande de fotografias, um de capa azul?
- Aquele antigo? Está guardado num baú lá no quarto de hóspedes. Faz muito tempo que ele está ali, junto com outros pertences da...
- Traga-o aqui, por favor - disse, cortando a frase da mulher. Enquanto ela saía, ele virou-se para o taxista, já um pouco desconfiado.
- Você é daqui mesmo?
- Não senhor. Sou de Cajazeiras, lá na Paraíba. Mas já tem três anos que moro aqui, conheço a cidade como a palma da mão. O senhor sabe quem é Joaquim Terto, doutor?
O médico fez que sim. Joaquim Terto era um taxista muito popular na cidade.
- Pois sou primo legítimo dele.
A mulher voltava com o álbum nas mãos, entregou-o ao médico e este o abriu. Era um álbum velho, já bastante corroído pelo tempo. Havia uma fotografia de mulher que tomava toda a primeira página. Ele ficou algum tempo contemplando a foto, com uma expressão que não disfarçava a profunda tristeza. Por fim, rompeu o silêncio que já estava ficando constrangedor.
- Seria esta a mulher? - virou o álbum para o motorista de táxi.
- Era sim, era esta mesma. Uma senhora muito distinta, educada... e trajava este mesmo vestido aí da foto.
- Era o vestido do seu último aniversário. Era também o vestido com o qual ela foi... - o médico interrompeu-se, a voz já embargada.
- Ela é parenta sua, doutor?
- Ela era a minha esposa. Ela morreu...
- Hein?!
- ... há dez anos atrás.

O motorista de táxi ergueu-se do sofá quase que de supetão. Seu rosto estava transtornado, as mãos amassavam nervosamente o pequeno boné. Agora estavam explicados aqueles estranhos calafrios, aquela sensação tão desconhecida que sentira enquanto transportava a mulher. Virou-se e caminhou apressado em direção à porta de saída.
- Eh, espere! O dinheiro da corrida - falou o médico, tentando alcançá-lo.
- Não... Não... Deus me livre de cobrar corrida de defunto!
Saiu, fazendo o sinal da cruz.





Francisco Cleóbulo Teixeira

domingo, 19 de dezembro de 2010

Sobre o poema “Flor do tempo”

Este poema me veio numa noite de furor alcoólico, no longínquo ano de 1987. Eu estava chegando de viagem à minha cidade natal, mas o meu ânimo era de fuga: eu queria sair dali, daquela vida, e não precisar mais voltar. Pela velocidade com que dirigia, inconscientemente era como se quisesse fugir da própria vida...
Mas aquele era um tempo de noites furiosas, tempo de alegre e entusiástica autodestruição. Não penso mais assim, no que diz respeito aos lugares, às pessoas e às atitudes. Continuo pensando assim no que diz respeito à busca.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Flor do tempo

Qual criança com febre
A mente
À mercê de um delírio.
A máquina cúmplice
Ilumina e devora a estrada
Com a voracidade das feras.
Ela ruge
E meu sangue corre macio
Suave carícia, suave
Entre as minhas artérias...
Eu, a máquina
O conjunto, o efeito
Velocidade...
Sublime, translúcida, fatal.
As pálpebras já pesam
Mas a máquina ruge, e ao longe
Surgem tuas luzes.
Dá-me um tempo
Presenteia-me com a tua distância
A verdade, bem sei, não reina em ti
Não é de ti que ela brotará.
Não dos teus bares sórdidos
Desses copos cheios-vazios
Dessa inércia ululante.
Não dessa vida, ei-la por um fio
Ou de uma morte mulher sedutora.
A verdade brilha no horizonte
Na busca
É flor que brota do tempo.

Francisco Cleóbulo Teixeira

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Filhos da rua

Ei-los
Filhos sem pais
Meninas-mães de filhos
De quem?
Pela avenida indo e vindo
Sem saber para onde
Nem de onde.
Subsistências
Sempre na rua, porque
De todas as portas, enxotados
Não como cães: os cães ficam.
Espantalhos
Trapos sobre o couro
Couro sobre os ossos
E quase que mais nada.
Deserdados
Andam aos bandos
Mas nunca houve tanta solidão
E o futuro
Não é nem o dia seguinte.
Invisíveis
É da indiferença do mundo
Que vem a mãe de todas as dores.
Então lhes resta a cola
Alimento remédio único, pára
Todas as dores, para todas as fomes.
Todos têm cor de cinza.
São todos cinza.

Francisco Cleóbulo Teixeira

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Sobre o poema “Chatila e Sabra (Retrato de um massacre)”

Sempre tive admiração pelos judeus. É um povo grandioso que muito fez pelos avanços da humanidade nos mais diversos campos da ciência e cultura, mas que tanto sofreu, espalhado e perseguido pelos quatro cantos do mundo.
Entretanto, afirmo a premente necessidade de reconhecimento da Palestina como Estado livre e soberano. Tanto quanto os israelenses, os palestinos têm direito ao seu território integralmente, com absoluta independência e autodeterminação.

domingo, 5 de dezembro de 2010

Chatila e Sabra (Retrato de um massacre)

Chatila e Sabará (Retrato de um massacre)

A Yasser Arafat

Foi profundo o ritual
De tantas mãos descarnadas
Desarmadas.
Toscas, cravando-se trêmulas
De um tremor derradeiro
Na terra santa
Sonhada.
Havia canteiros de olhos lívidos
Guardando a inexpressão de vidas arrebatadas.
Havia cães, carneiros, porcos
Homens, mulheres
Crianças velhas e velhos crianças
Sem luz sem cor sem idade
Na súbita morte enlaçados.
Havia crateras na carne
Sangue na carne, sangue no sangue
Sangue na terra.
Havia uma neblina fina constante
Uma neblina em tudo e para todos
Só não para aqueles.
Mas outros dias virão, e com eles
O Sol virá, sempre vem.
E viva a doce mãe Palestina
Pátria uterina, embrião
Mais do que causa, sina.



Francisco Cleóbulo Teixeira